O ZODÍACO CRISTÃO

on terça-feira, 15 de maio de 2012

O ZODÍACO CRISTÃO


Diácono Elmes Xisto Meira

        É pena que algo tão cheio de significado para nós tenha se perdido. Sempre achei estranho quando entrava na Catedral Imaculada Conceição de Jacarezinho, Paraná, e em seu átrio, no teto, via os signos do zodíaco. A primeira explicação que eu tinha encontrado era a da “licença poética”. Havia na catedral os signos, pois eles simbolizam o cosmos, assim ao entrar pelo átrio sairíamos do tempo dos homens e estaríamos adentrando no kairós, tempo de Deus.
       A explicação era razoável, mas não me convencia e, vez por outra, ao entrar na catedral eu ficava literalmente matutando sobre o assunto. Como havia outras coisas para pesquisar nunca dei muita importância acadêmica a isso. Eis que um dia numa conversa informal com um padre amigo meu ele dizia sobre as 12 constelações conhecidas da Antiguidade que simbolizavam todo o universo e que nas Igrejas era comum pintar o horóscopo.
       É bom deixar claro que o significado dado era outro. Não como a astrologia o propõe hoje: que conforme a posição dos astros a pessoa terá essa ou aquela personalidade. Ou pior, alguns seguidores dessa mentalidade não saem nem de casa, pois o horóscopo aconselhou isso hoje. Devo confessar que leio horóscopo e fico tão decepcionado: segundo ele já era para eu estar rico (que será que fiz de errado? O que leio lá a meu ver se encaixa em qualquer pessoa, independente do signo.
       Voltando para os signos na catedral: fui pesquisar (uma amiga minha havia requisitado uma ajuda) e não é que eu descobri: “Em seus reflexos sobre o mundo e a vida, apreciados, sobretudo na arte gótica e românica, surgem como frequência os signos do zodíaco, associados em geral com as atividades do mês: sinais da correspondência do acontecer ‘no céu e na terra’, símbolo do tempo que se esvai (muitas vezes em conexão com a representação personificada do ano), figura dos homens chamados a felicidade e sobem pela escada das esferas celestes. O numero doze favoreceu semelhante combinação e, de mais a mais, o conhecimento e aprofundamento simbólico que os Padres da Igreja dedicavam ao zodíaco. Zenão de Verona pôs o zodíaco em referência aos doze apóstolos. Correspondentemente, uma arca de relíquias da igreja do castelo de Quedlinburg associa os apóstolos ao zodíaco. Outros sentidos simbólico-cristãos vêm no carneiro o Cristo Cordeiro, no touro, enquanto animal de sacrifício, o Cristo Vítima, nos gêmeos os dois testamentos, no câncer a concentração dos sete pecados capitais. A virgem precede à balança, porque ela gerou o Filho de Deus que restabelece a justiça. O leão é símbolo da ressurreição. A ele devemos a vitoria sobre o escorpião (a serpente). O sagitário e o capricórnio são sinais demoníacos. Os peixes representam judeus e pagãos, ambos salvos pelas águas do batismo, que o aquário (Cristo) derrama. Nas representações figurativas, a simbologia nem sempre mantém forma uniforme, podendo variar. Exemplos, pórticos das catedrais de Amiens, Cremona; mosaicos , segundo desenhos de Rafael, em S. Maria Del Popolo, Roma.” (In: HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução: João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994. p. 329-330).
       Você que é de algum signo que na visão cristã simboliza algo demoníaco, não se preocupe. Para nós cristãos, o horóscopo não é real, como ele é mostrado hoje. Real para nós é a graça de Deus. O que o cristianismo antigo usou era apenas uma forma de catequização e leitura do mundo através das constelações. Como fiquei mais tranquilo em descobrir porque em nossa catedral há símbolos do zodíaco.


RESENHA

on domingo, 6 de maio de 2012

RESENHA DO ARTIGO “BIOÉTICA E TEOLOGIA:
DIÁLOGO ENTRE MÍNIMOS E MÁXIMOS”*

Pe. Luiz Fernando de Lima

A interdisciplinaridade e a pluralidade são marcas características da Bioética. Também a teologia não se isenta desse diálogo, uma vez que pode contribuir para uma compreensão mais ampla, que possibilite um horizonte maior de diálogo capaz de colocar a vida humana como valor absoluto em todas as suas etapas e sentidos.
É a partir deste pensamento que o Professor Mário Antônio Sanches apresenta toda a sua argumentação sobre o diálogo entre bioética e teologia. O referido artigo está didaticamente dividido em cinco partes. Na Introdução o autor apresenta as diretrizes por onde encaminhará a discussão deixando claro que a pluralidade quando pensada de forma sadia não se transforma em elemento de fragmentação e muito menos de divisão. Outro ponto abordado é Busca de uma relação entre Bioética e Teologia, que se guia pela constatação de que “é a bioética que está sendo mais impactada pela teologia do que o inverso”. Em seguida, o Prof. Mário Sanches reflete sobre as tensões entre teologia e bioética e o papel do (a) teólogo (a), tensões essas que acabam gerando conflitos entre uma bioética secular e outra confessional, concluindo que o teólogo é aquele que se insere no debate da bioética com uma “mentalidade dialogante e não como juiz do permitido e do proibido”. No ponto sobre Bioética de mínimos e máximos, o autor reporta-se à ideia de uma ética de mínimos e máximos para fazer perceber que essa relação é necessária, mas não pode ser de absorção, pois “os mínimos se alimentam dos máximos; os máximos devem purificar-se a partir dos mínimos”. Por fim, em proposições e perspectivas a conclusão gira em torno da realidade de que uma bioética plena é aquela que consegue promover um verdadeiro diálogo e interação entre uma bioética secular e uma bioética confessional, fruto de uma interdisciplinaridade com a teologia.
O autor deste artigo, Mário Antônio Sanches, é professor Titular da PUCPR. Fez pós-doutorado em Bioética na Cátedra de Bioética da Universidad Pontificia Comillas, em Madrid. É Doutor em Teologia, pela EST/IEPG, de São Leopoldo, RS, com pesquisa - com apoio da Capes - no Instituto Kennedy de Ética na Universidade Georgetown, Washington, DC. É mestre em Antropologia Social, pela UFPR. Atualmente é professor de Teologia Moral e Bioética na PUCPR, Curitiba, onde é diretor do Programa de Pós-Graduação em Teologia e líder do Grupo de Pesquisa Teologia e Bioética.
Em linhas gerais, as ideias que perpassam todo o escrito são as de que a bioética é gerada sempre em um contexto interdisciplinar. A pluralidade não consiste num conflito eminente, mas torna-se um horizonte sadio e enriquecedor. É justamente por conta desta interdisciplinaridade que a teologia, a cristã apresentada pelo autor, também pode dialogar com a bioética; no entanto, essa relação traz a marca da confessionalidade religiosa, mesmo quando a teologia se dá a partir do diálogo inter-religioso, por exemplo.
Outrossim, aparece no texto bem clara a ideia de que a parte ou ramo da teologia que dialoga com a bioética é a teologia moral, uma vez que um número expressivo de teólogos dessa área marcaram a elaboração e a consolidação da bioética. Merece destaque o pensamento de Adela Cortina que defende uma moral laica sem ser laicista. Já Marciano Vidal propugna a ideia de que as duas opções éticas (racional e cristã) não somente não se opõem, mas convergem para uma unidade superior.
É de suma importância também a contraposição de opiniões feita pelo autor entre as visões de Engelhardt Jr e a posição de Javier Sábada. O primeiro rejeita a racionalidade na teologia, ao defender a experiência religiosa como elemento decisivo. Por sua vez, o segundo defende um laicismo excludente que coloca “sob suspeita sistemática o argumento de um crente”, pretendendo excluir decididamente do debate público todo aquele que mantenha o mínimo de convicções religiosas.
Por conseguinte, pode-se dizer que pela profundidade e experiência com que o tema da relação entre bioética e teologia é tratado, este artigo é leitura obrigatória para todo aquele que pretenda se colocar no turbilhão dos debates éticos contemporâneos para perceber que a bioética que nasce do diálogo com a teologia moral é, sem dúvida, confessional. Ao teólogo é mister compreender um pouco mais desse processo de interação entre religião e ética, uma vez que “reduzir a religião à ética é empobrecê-la e reduzir a ética à religião constituiria um gravíssimo problema numa sociedade secular e pluralista como a nossa”.



* SANCHES, M. A. Bioética e teologia – diálogo entre mínimos e máximos. Estudos Teológicos, v. 51, p. 172-185, 2011.


ANÁLISE DO CONTEXTO ECLESIAL ATUAL

 ANÁLISE DO CONTEXTO ECLESIAL ATUAL A PARTIR DE UMA
CASA DE FORMAÇÃO PRESBITERAL*


Pe. Luiz Fernando de Lima

O objetivo primeiro destas páginas consiste em apresentar o atual contexto eclesial visto a partir de uma casa de formação presbiteral. Diz o Concílio Vaticano II que o seminário constitui-se no coração da diocese. Portanto, um ambiente que recebe jovens de todos os cantos da realidade diocesana parece ser um bom ponto de partida para uma análise da vida, tendência e caminhos por onde a Igreja está se guiando.
Ao lançar o olhar para o horizonte eclesial de hoje, percebe-se ser ele reflexo de algumas análises confeccionadas já na primeira metade do século XX. Frases como “O cristão do século XX será místico ou não será” de Karl Rahner são um bom exemplo das análises feitas anteriormente sobre os rumos da religião nos tempos vindouros. Ao lado de grandes pensadores do século passado encontra-se André Malraux (1901-1976), grande pensador e escritor francês de assuntos políticos e culturais, que possui obras comentadas por grandes personalidades como Hannah Arendt. A análise de Malraux parte de uma constatação intrigante; diz ele que o ocidente moderno constitui-se na única civilização conhecida que se formou sem um horizonte transcendente. A partir deste prognóstico, Malraux faz as seguintes constatações: “O século XXI será religioso ou não será” e “Ou nossa civilização encontra um horizonte ou se auto-destruirá”.
Esse pensador francês elencou três formas de o religioso irromper no século XXI: “a renovação de uma religião já existente; o surgimento de uma nova religião; ou por qualquer outra coisa totalmente imprevisível”.
Contrariando todas as expectativas do positivismo de Comte (1798-1857), que propugnava a superação do religioso e do transcendental por parte da humanidade para atingir o estágio perfeito que é o positivo, o que se vê é que o religioso está presente como nunca esteve antes entre os ocidentais. Para constatar isso não se precisa ir muito longe, basta perceber quantas comunidades religiosas surgiram nestes últimos tempos, a idolatria do dinheiro, do poder, do bem-estar, o próspero mercado religioso, etc. A religião já é hoje o negócio mais rentável do capitalismo.
Não obstante ao até aqui constatado, pergunta-se agora como o religioso se faz presente de forma tão marcante no século XXI. Amparando-se novamente em Malraux, percebe-se que a irrupção do religioso não se deu por meio da renovação de uma religião tradicional já existente, visto estarem todas em amplo processo de crise e involução; também se verifica que o religioso não voltou pelo surgimento de uma nova religião ou a criação de um novo deus; o que se nota é que o religioso se faz presente hoje a partir de “qualquer outra coisa totalmente imprevisível”.
É extremamente importante levar em consideração as formas como esse “imprevisível” se manifesta no hoje da história eclesial. A primeira delas é o ressurgimento de novos fundamentalismos. Basta prestar um pouco de atenção nos novos movimentos existentes no catolicismo que esta realidade salta aos olhos; a tendência de regresso ao passado é muito presente seja nas próprias vestimentas, concepções teológicas e litúrgicas que estão mais para a antiga apologética do que para uma postura de diálogo. Ainda nesta esteira encontram-se muitos pregadores midiáticos e líderes de movimentos que por meio de seus discursos têm gerado consciências escrupulosas.
A segunda forma de manifestação do “imprevisível” é o surgimento de uma religiosidade eclética e difusa, que se move entre o mágico e o esotérico, constituindo-se numa estranha combinação de confissão de fé e afirmação narcisista, típicas de um sujeito ameaçado. No universo do catolicismo, é suficiente perceber a concepção que os fiéis têm de sacramento e bênção. Já na casa de formação presbiteral, basta analisar o modelo de sacerdote perfeito para os dias de hoje presente entre os vocacionados, que migra do pop-star ao terapeuta/taumaturgo; é quase inexistente o ideal do bom pastor.
O terceiro modo de manifestação do “imprevisível” é o chamado fenômeno “religião sem religião”. Esta ideia hoje é muito comum e pode-se constatá-la em afirmações do tipo: “Creio em Deus, mas não vou à Igreja” ou “Não preciso de intermediação. Falo diretamente com Deus”. Na casa de formação, por exemplo, essa realidade gera um pensamento apologético e não tanto de diálogo. Na dimensão missionária, o sentimento dos vocacionados é de uma missão centrípeta (sair e trazer para o seio da Igreja os fiéis afastados; encorpar mais o rebanho = quantidade) do que uma missão centrífuga (diálogo e defesa da vida em todas as circunstâncias = qualidade). É uma constatação triste: muitos dos vocacionados pretendem serem sacerdotes não para servirem ao Reino, mas para serem os “novos cruzados” ou os cruzados dos tempos atuais.
Toda essa realidade não é algo surgido do nada. Tem uma história longa e cheia de percalços. Em nível de referência podem-se citar duas grandes reformas/revoluções: a protestante em âmbito eclesial e a industrial no contexto da sociedade. Os frutos bons ou maus (não cabe aqui qualquer juízo de valor) dessa extensa caminhada podem ser observados a todo momento: totalitarismos da razão, da técnica e do capital; pessoas frustradas, angustiadas, depressivas e em busca de auto-ajuda; promessa de um paraíso terrestre; sentimento de orfandade; fragmentação em todos os campos da vida; a irrupção de uma racionalidade funcional, que só leva em conta a produtividade e o lucro; queda dos metarrelatos; grandes conquistas... Para Éric Hobsbawn (1917...), grande historiador marxista reconhecido internacionalmente, em sua obra “Era dos extremos”, a humanidade se desenvolveu mais nos últimos cinquenta anos do que nos últimos cinco séculos.
No universo religioso, especificamente, o que se nota é a existência de um próspero mercado de auto-ajuda, uma religião que se caracteriza – sobretudo – pela sua dimensão terapêutica e pela sua redogmatização. Outrossim, o que se percebe é que por detrás de uma fé imatura há uma tremenda confusão no que se entende por salvação. Longe do conceito de que salvação é um dom gratuito do Criador trazido a nós pela encarnação do Verbo, hoje a salvação é compreendida e vivida como prosperidade material, saúde física e realização afetiva; em outros termos, vive-se a religião como panaceia com soluções providencialistas e imediatas. É evidente que o catolicismo não está isento desta realidade, pois os próprios vocacionados que serão guias do povo de Deus se encaminham a passos largos para um entrincheiramento identitário que se refugia, sobremaneira, no clericalismo presente na casa de formação presbiteral.
Claro está o processo pelo qual se movem os esforços despendidos em “prol do Reino”, que como diz a oração eucarística V é de Deus e nosso, mas que parece ser só nosso ou só de Deus. O que houve e continua existindo é um misto de inversão e mudança de foco. Em outras palavras, o místico hoje é entendido como subjetividade individual, o profético como terapêutico e o ético pura e simplesmente como estético. Em nome de uma realização imediata e instantânea vive-se não um antropocentrismo como em épocas passadas, mas uma verdadeira cultura do corpo, onde em nome do bem-estar o ético é relegado a segundo/terceiro plano, sendo sobreposto pelo estético e o terapêutico a qualquer custo. Muitos membros do clero estão se enveredando por esta vertente, promovendo um processo de protestantização do catolicismo.
A perplexidade e as mudanças do presente são tão reais que sequer há uma convencionalidade em como chamar a época atual. Não se sabe se é uma modernidade em transição, ou uma pós-modernidade, ou uma sobre-modernidade, ou uma modernidade tardia como gosta de dizer Habermas, ou uma contemporeneidade... enfim, a lista é longa. No entanto, um pensador moderno parece se sobrepor aos demais na análise dessa mudança de época. Zygmunt Bauman (1925...) denomina de modernidade líquida o tempo atual. Com essa expressão, entende esse pensador polonês o esvaziar-se da sociedade de hoje, onde a liquidez faz notar que tudo o que é sólido se desmancha no ar, basta observar a queda dos metarrelatos já citada anteriormente.
A liquidez dos processos de relação e vivência desvia o vocacionado das verdadeiras motivações para seguir o ideal do presbiterado. Ao invés da configuração ao Cristo pobre e servidor, o que se percebe hoje muito presente são as preocupações burguesas, fato este já refletido durante os ENP (Encontro Nacional de Presbíteros) de 2008 e 2010. A opção preferencial pelos pobres, que segundo o Papa Bento XVI - em seu discurso inaugural na Conferência de Aparecida em 2007 – está radicada na fé cristológica, sequer faz parte das primeiras preocupações dos vocacionados, quiçá até mesmo das últimas. A opção pelos pobres não é exclusiva e nem excludente. Diz Jon Sobrino: “com a opção pelos pobres, nenhum rico se considere excluído da Igreja, mas também que nenhum rico se considere incluído sem fazer essa opção”.  A mídia tem criado ilusões como “o bom padre é aquele que faz sucesso”, e como dito anteriormente o sucesso = salvação é prosperidade material, saúde física e realização afetiva, entre os vocacionados hoje é muito presente o que se tem chamado a “síndrome do C”: casa, conforto, carro, conta bancária, cartão de crédito, celular, cd, capas medievais nas celebrações, conexões na internet...
No mesmo discurso inaugural da Conferência de Aparecida, Bento XVI analisou o contexto eclesial e social de hoje e concluiu que “estamos em uma encruzilhada”. Ao se fazer referência a esta constatação papal, quer-se trazer para a discussão o modo como a Igreja tem se comportado diante de todo esse processo de mudanças, entendido por muitos como retrocesso. Para isso, é necessário avaliar os modelos de pastoral inconsequentes empregados nestes tempos de crise. Esses modelos estão presentes na casa de formação e são percebidos através das posturas, gestos, linguagem e comportamento dos vocacionados.
O primeiro modelo de pastoral que se observa hoje é a “pastoral de conservação”, que desconhecendo as mudanças parece viver num período de cristandade já superado pelo Vaticano II. Esse modelo está centrado na figura do padre e da paróquia na sua configuração tridentina e no devocionismo em sua configuração pré-tridentina. Os sacramentos são entendidos como vacina espiritual e não como sinais de Deus na vida da Igreja e da pessoa. Também aqui nesse modelo há uma inversão chocante: no lugar da Bíblia se colocam os catecismos e, ao invés da teologia, tem espaço o doutrinismo.
A “pastoral apologista” é aquela que teme as mudanças, assume uma postura de defesa da instituição católica e sua missão é de forma centrípeta. Numa atitude hostil ao mundo, cria seu próprio mundo, uma espécie de sub-cultura eclesiástica, gerando a necessidade de se vestir diferente, morar diferente, não conviver com o “diferente”. É um estilo de neo-cristandade atual com espírito de gueto.
Por sua vez, a “pastoral secularista” padecendo diante das mudanças pretende oferecer soluções e respostas às necessidades imediatas das pessoas, em sua grande maioria, órfãos de sociedade e religião. Nesse modelo, ocorre um reducionismo da utopia que gere a vida em busca da felicidade plena: “quero ser feliz aqui e agora”. É a busca de saídas providencialistas e imediatas, onde Deus é o objeto de desejos pessoais.
Ainda há a “pastoral liberacionista”, que negando também as mudanças parte de um pressuposto de encantamento com a modernidade e reivindica a renovação do Concílio Vaticano II e da profética tradição latino-americana. Em meio à perplexidade do presente, já apontada acima, em lugar de tirar lições e buscar novas mediações, esse modelo de pastoral se fecha minimizando ou mesmo negando as mudanças atuais, bem como o pessoal, dando valor extremado só ao político e social.
Como se vê, a encruzilhada apontada por Bento XVI existe. O que fazer? Desistir e retornar atrás ou escolher um caminho e continuar seguindo?
Apesar de toda insegurança presente neste contexto, trazida, sobretudo pela queda dos metarrelatos, algumas luzes se despontam no horizonte e parecem indicar a melhor estrada. A primeira e talvez mais lúcida, seja entender o Vaticano II como ponto de partida da ação pastoral e não termo de chegada. Também parece ser importante resgatar a profética caminhada de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. De Medellín uma evangelização que acontece ligada à promoção humana. De Puebla a Igreja comunhão-participação. De Santo Domingo, o protagonismo dos leigos e a conversão pastoral. De Aparecida, uma Igreja discípula-missionária, que guarda a tradição como “a história do Espírito Santo na história do povo de Deus” (Bruno Forte) e, por isso, se coloca em estado permanente de missão.
Uma autêntica pastoral missionária está preocupada em encarnar o Evangelho, diferentemente das preocupações missionárias dos vocacionados de hoje, que leva em consideração muito mais o periférico e visível do que o essencial, que muitas vezes é invisível. Aparecida propugna diferentemente desta ideia, uma Igreja Samaritana (DAp 26), ou seja, uma Igreja propositiva, missioneira, em espírito de diálogo e serviço, companheira de caminho de toda a humanidade.
Evidentemente, isso tudo exige conversão pastoral. Aparecida diz ser a conversão pastoral uma exigência para um estado permanente de missão e, por missão, o saudoso Paulo VI entendia uma Igreja evangelizadora, que começa por evangelizar a si mesma (EN 15). Em resumo, a conversão pastoral abarca quatro âmbitos, ou seja, a autêntica conversão pastoral tem que necessariamente passar por estes quatro pontos: a consciência da comunidade eclesial, a práxis pessoal e comunitária, as relações de igualdade e autoridade e as estruturas.
Diante dessa realidade da conversão pastoral, o que se vê nas casas de formação presbiteral parece ser o contrário: clericalismo, aburguesamento, tridentinismo teológico e litúrgico, romanização do rito celebrativo, entrincheiramento identitário, missão centrípeta, síndrome do C, ideal midiático e terapêutico, etc. Denuncia Aparecida: “… tem nos faltado coragem, persistência e docilidade à graça para levar adiante a renovação iniciada pelo Concílio Vaticano II, e impulsionada pelas anteriores Conferências Gerais e para assegurar o rosto latino-americano e caribenho de nossa Igreja” (100 h).
O contexto eclesial de hoje urge, conforme Aparecida, viver um novo Pentecostes (362). Exige uma missão que aconteça no trinômio Igreja-Reino-Mundo (366, 212, 516). Acolher e colaborar com a obra que o Espírito realiza também fora da Igreja (374, 326, 384). Reflorescer do laicato (497). Renovação das paróquias (170).
Enfim, o caminho apesar de turvo ainda aponta luzes. Primeiro porque nem tudo pode ser generalizado e segundo, porque o pluralismo deve ser usado como pressuposto para a alteridade. Ao lado de vocacionados perdidos neste turbilhão de mudanças, há aqueles convictos de um ideal servidor, acolhedor, de diálogo com o outro... Esses sobreviverão aos tempos de crise porque podem repetir como Paulo: “Eu sei em quem acreditei” (2Tm 1,12).



* Este texto é fruto de anotações feitas em sala de aula na Pontifícia Universidade Católica do Paraná em janeiro de 2012 no curso de especialização em Missiologia. Estas anotações correspondem ao conteúdo ministrado pelo Prof. Angenor Brighenti na disciplina “Contexto Eclesial atual e Aparecida”.