ANÁLISE DO CONTEXTO ECLESIAL ATUAL

on domingo, 6 de maio de 2012

 ANÁLISE DO CONTEXTO ECLESIAL ATUAL A PARTIR DE UMA
CASA DE FORMAÇÃO PRESBITERAL*


Pe. Luiz Fernando de Lima

O objetivo primeiro destas páginas consiste em apresentar o atual contexto eclesial visto a partir de uma casa de formação presbiteral. Diz o Concílio Vaticano II que o seminário constitui-se no coração da diocese. Portanto, um ambiente que recebe jovens de todos os cantos da realidade diocesana parece ser um bom ponto de partida para uma análise da vida, tendência e caminhos por onde a Igreja está se guiando.
Ao lançar o olhar para o horizonte eclesial de hoje, percebe-se ser ele reflexo de algumas análises confeccionadas já na primeira metade do século XX. Frases como “O cristão do século XX será místico ou não será” de Karl Rahner são um bom exemplo das análises feitas anteriormente sobre os rumos da religião nos tempos vindouros. Ao lado de grandes pensadores do século passado encontra-se André Malraux (1901-1976), grande pensador e escritor francês de assuntos políticos e culturais, que possui obras comentadas por grandes personalidades como Hannah Arendt. A análise de Malraux parte de uma constatação intrigante; diz ele que o ocidente moderno constitui-se na única civilização conhecida que se formou sem um horizonte transcendente. A partir deste prognóstico, Malraux faz as seguintes constatações: “O século XXI será religioso ou não será” e “Ou nossa civilização encontra um horizonte ou se auto-destruirá”.
Esse pensador francês elencou três formas de o religioso irromper no século XXI: “a renovação de uma religião já existente; o surgimento de uma nova religião; ou por qualquer outra coisa totalmente imprevisível”.
Contrariando todas as expectativas do positivismo de Comte (1798-1857), que propugnava a superação do religioso e do transcendental por parte da humanidade para atingir o estágio perfeito que é o positivo, o que se vê é que o religioso está presente como nunca esteve antes entre os ocidentais. Para constatar isso não se precisa ir muito longe, basta perceber quantas comunidades religiosas surgiram nestes últimos tempos, a idolatria do dinheiro, do poder, do bem-estar, o próspero mercado religioso, etc. A religião já é hoje o negócio mais rentável do capitalismo.
Não obstante ao até aqui constatado, pergunta-se agora como o religioso se faz presente de forma tão marcante no século XXI. Amparando-se novamente em Malraux, percebe-se que a irrupção do religioso não se deu por meio da renovação de uma religião tradicional já existente, visto estarem todas em amplo processo de crise e involução; também se verifica que o religioso não voltou pelo surgimento de uma nova religião ou a criação de um novo deus; o que se nota é que o religioso se faz presente hoje a partir de “qualquer outra coisa totalmente imprevisível”.
É extremamente importante levar em consideração as formas como esse “imprevisível” se manifesta no hoje da história eclesial. A primeira delas é o ressurgimento de novos fundamentalismos. Basta prestar um pouco de atenção nos novos movimentos existentes no catolicismo que esta realidade salta aos olhos; a tendência de regresso ao passado é muito presente seja nas próprias vestimentas, concepções teológicas e litúrgicas que estão mais para a antiga apologética do que para uma postura de diálogo. Ainda nesta esteira encontram-se muitos pregadores midiáticos e líderes de movimentos que por meio de seus discursos têm gerado consciências escrupulosas.
A segunda forma de manifestação do “imprevisível” é o surgimento de uma religiosidade eclética e difusa, que se move entre o mágico e o esotérico, constituindo-se numa estranha combinação de confissão de fé e afirmação narcisista, típicas de um sujeito ameaçado. No universo do catolicismo, é suficiente perceber a concepção que os fiéis têm de sacramento e bênção. Já na casa de formação presbiteral, basta analisar o modelo de sacerdote perfeito para os dias de hoje presente entre os vocacionados, que migra do pop-star ao terapeuta/taumaturgo; é quase inexistente o ideal do bom pastor.
O terceiro modo de manifestação do “imprevisível” é o chamado fenômeno “religião sem religião”. Esta ideia hoje é muito comum e pode-se constatá-la em afirmações do tipo: “Creio em Deus, mas não vou à Igreja” ou “Não preciso de intermediação. Falo diretamente com Deus”. Na casa de formação, por exemplo, essa realidade gera um pensamento apologético e não tanto de diálogo. Na dimensão missionária, o sentimento dos vocacionados é de uma missão centrípeta (sair e trazer para o seio da Igreja os fiéis afastados; encorpar mais o rebanho = quantidade) do que uma missão centrífuga (diálogo e defesa da vida em todas as circunstâncias = qualidade). É uma constatação triste: muitos dos vocacionados pretendem serem sacerdotes não para servirem ao Reino, mas para serem os “novos cruzados” ou os cruzados dos tempos atuais.
Toda essa realidade não é algo surgido do nada. Tem uma história longa e cheia de percalços. Em nível de referência podem-se citar duas grandes reformas/revoluções: a protestante em âmbito eclesial e a industrial no contexto da sociedade. Os frutos bons ou maus (não cabe aqui qualquer juízo de valor) dessa extensa caminhada podem ser observados a todo momento: totalitarismos da razão, da técnica e do capital; pessoas frustradas, angustiadas, depressivas e em busca de auto-ajuda; promessa de um paraíso terrestre; sentimento de orfandade; fragmentação em todos os campos da vida; a irrupção de uma racionalidade funcional, que só leva em conta a produtividade e o lucro; queda dos metarrelatos; grandes conquistas... Para Éric Hobsbawn (1917...), grande historiador marxista reconhecido internacionalmente, em sua obra “Era dos extremos”, a humanidade se desenvolveu mais nos últimos cinquenta anos do que nos últimos cinco séculos.
No universo religioso, especificamente, o que se nota é a existência de um próspero mercado de auto-ajuda, uma religião que se caracteriza – sobretudo – pela sua dimensão terapêutica e pela sua redogmatização. Outrossim, o que se percebe é que por detrás de uma fé imatura há uma tremenda confusão no que se entende por salvação. Longe do conceito de que salvação é um dom gratuito do Criador trazido a nós pela encarnação do Verbo, hoje a salvação é compreendida e vivida como prosperidade material, saúde física e realização afetiva; em outros termos, vive-se a religião como panaceia com soluções providencialistas e imediatas. É evidente que o catolicismo não está isento desta realidade, pois os próprios vocacionados que serão guias do povo de Deus se encaminham a passos largos para um entrincheiramento identitário que se refugia, sobremaneira, no clericalismo presente na casa de formação presbiteral.
Claro está o processo pelo qual se movem os esforços despendidos em “prol do Reino”, que como diz a oração eucarística V é de Deus e nosso, mas que parece ser só nosso ou só de Deus. O que houve e continua existindo é um misto de inversão e mudança de foco. Em outras palavras, o místico hoje é entendido como subjetividade individual, o profético como terapêutico e o ético pura e simplesmente como estético. Em nome de uma realização imediata e instantânea vive-se não um antropocentrismo como em épocas passadas, mas uma verdadeira cultura do corpo, onde em nome do bem-estar o ético é relegado a segundo/terceiro plano, sendo sobreposto pelo estético e o terapêutico a qualquer custo. Muitos membros do clero estão se enveredando por esta vertente, promovendo um processo de protestantização do catolicismo.
A perplexidade e as mudanças do presente são tão reais que sequer há uma convencionalidade em como chamar a época atual. Não se sabe se é uma modernidade em transição, ou uma pós-modernidade, ou uma sobre-modernidade, ou uma modernidade tardia como gosta de dizer Habermas, ou uma contemporeneidade... enfim, a lista é longa. No entanto, um pensador moderno parece se sobrepor aos demais na análise dessa mudança de época. Zygmunt Bauman (1925...) denomina de modernidade líquida o tempo atual. Com essa expressão, entende esse pensador polonês o esvaziar-se da sociedade de hoje, onde a liquidez faz notar que tudo o que é sólido se desmancha no ar, basta observar a queda dos metarrelatos já citada anteriormente.
A liquidez dos processos de relação e vivência desvia o vocacionado das verdadeiras motivações para seguir o ideal do presbiterado. Ao invés da configuração ao Cristo pobre e servidor, o que se percebe hoje muito presente são as preocupações burguesas, fato este já refletido durante os ENP (Encontro Nacional de Presbíteros) de 2008 e 2010. A opção preferencial pelos pobres, que segundo o Papa Bento XVI - em seu discurso inaugural na Conferência de Aparecida em 2007 – está radicada na fé cristológica, sequer faz parte das primeiras preocupações dos vocacionados, quiçá até mesmo das últimas. A opção pelos pobres não é exclusiva e nem excludente. Diz Jon Sobrino: “com a opção pelos pobres, nenhum rico se considere excluído da Igreja, mas também que nenhum rico se considere incluído sem fazer essa opção”.  A mídia tem criado ilusões como “o bom padre é aquele que faz sucesso”, e como dito anteriormente o sucesso = salvação é prosperidade material, saúde física e realização afetiva, entre os vocacionados hoje é muito presente o que se tem chamado a “síndrome do C”: casa, conforto, carro, conta bancária, cartão de crédito, celular, cd, capas medievais nas celebrações, conexões na internet...
No mesmo discurso inaugural da Conferência de Aparecida, Bento XVI analisou o contexto eclesial e social de hoje e concluiu que “estamos em uma encruzilhada”. Ao se fazer referência a esta constatação papal, quer-se trazer para a discussão o modo como a Igreja tem se comportado diante de todo esse processo de mudanças, entendido por muitos como retrocesso. Para isso, é necessário avaliar os modelos de pastoral inconsequentes empregados nestes tempos de crise. Esses modelos estão presentes na casa de formação e são percebidos através das posturas, gestos, linguagem e comportamento dos vocacionados.
O primeiro modelo de pastoral que se observa hoje é a “pastoral de conservação”, que desconhecendo as mudanças parece viver num período de cristandade já superado pelo Vaticano II. Esse modelo está centrado na figura do padre e da paróquia na sua configuração tridentina e no devocionismo em sua configuração pré-tridentina. Os sacramentos são entendidos como vacina espiritual e não como sinais de Deus na vida da Igreja e da pessoa. Também aqui nesse modelo há uma inversão chocante: no lugar da Bíblia se colocam os catecismos e, ao invés da teologia, tem espaço o doutrinismo.
A “pastoral apologista” é aquela que teme as mudanças, assume uma postura de defesa da instituição católica e sua missão é de forma centrípeta. Numa atitude hostil ao mundo, cria seu próprio mundo, uma espécie de sub-cultura eclesiástica, gerando a necessidade de se vestir diferente, morar diferente, não conviver com o “diferente”. É um estilo de neo-cristandade atual com espírito de gueto.
Por sua vez, a “pastoral secularista” padecendo diante das mudanças pretende oferecer soluções e respostas às necessidades imediatas das pessoas, em sua grande maioria, órfãos de sociedade e religião. Nesse modelo, ocorre um reducionismo da utopia que gere a vida em busca da felicidade plena: “quero ser feliz aqui e agora”. É a busca de saídas providencialistas e imediatas, onde Deus é o objeto de desejos pessoais.
Ainda há a “pastoral liberacionista”, que negando também as mudanças parte de um pressuposto de encantamento com a modernidade e reivindica a renovação do Concílio Vaticano II e da profética tradição latino-americana. Em meio à perplexidade do presente, já apontada acima, em lugar de tirar lições e buscar novas mediações, esse modelo de pastoral se fecha minimizando ou mesmo negando as mudanças atuais, bem como o pessoal, dando valor extremado só ao político e social.
Como se vê, a encruzilhada apontada por Bento XVI existe. O que fazer? Desistir e retornar atrás ou escolher um caminho e continuar seguindo?
Apesar de toda insegurança presente neste contexto, trazida, sobretudo pela queda dos metarrelatos, algumas luzes se despontam no horizonte e parecem indicar a melhor estrada. A primeira e talvez mais lúcida, seja entender o Vaticano II como ponto de partida da ação pastoral e não termo de chegada. Também parece ser importante resgatar a profética caminhada de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. De Medellín uma evangelização que acontece ligada à promoção humana. De Puebla a Igreja comunhão-participação. De Santo Domingo, o protagonismo dos leigos e a conversão pastoral. De Aparecida, uma Igreja discípula-missionária, que guarda a tradição como “a história do Espírito Santo na história do povo de Deus” (Bruno Forte) e, por isso, se coloca em estado permanente de missão.
Uma autêntica pastoral missionária está preocupada em encarnar o Evangelho, diferentemente das preocupações missionárias dos vocacionados de hoje, que leva em consideração muito mais o periférico e visível do que o essencial, que muitas vezes é invisível. Aparecida propugna diferentemente desta ideia, uma Igreja Samaritana (DAp 26), ou seja, uma Igreja propositiva, missioneira, em espírito de diálogo e serviço, companheira de caminho de toda a humanidade.
Evidentemente, isso tudo exige conversão pastoral. Aparecida diz ser a conversão pastoral uma exigência para um estado permanente de missão e, por missão, o saudoso Paulo VI entendia uma Igreja evangelizadora, que começa por evangelizar a si mesma (EN 15). Em resumo, a conversão pastoral abarca quatro âmbitos, ou seja, a autêntica conversão pastoral tem que necessariamente passar por estes quatro pontos: a consciência da comunidade eclesial, a práxis pessoal e comunitária, as relações de igualdade e autoridade e as estruturas.
Diante dessa realidade da conversão pastoral, o que se vê nas casas de formação presbiteral parece ser o contrário: clericalismo, aburguesamento, tridentinismo teológico e litúrgico, romanização do rito celebrativo, entrincheiramento identitário, missão centrípeta, síndrome do C, ideal midiático e terapêutico, etc. Denuncia Aparecida: “… tem nos faltado coragem, persistência e docilidade à graça para levar adiante a renovação iniciada pelo Concílio Vaticano II, e impulsionada pelas anteriores Conferências Gerais e para assegurar o rosto latino-americano e caribenho de nossa Igreja” (100 h).
O contexto eclesial de hoje urge, conforme Aparecida, viver um novo Pentecostes (362). Exige uma missão que aconteça no trinômio Igreja-Reino-Mundo (366, 212, 516). Acolher e colaborar com a obra que o Espírito realiza também fora da Igreja (374, 326, 384). Reflorescer do laicato (497). Renovação das paróquias (170).
Enfim, o caminho apesar de turvo ainda aponta luzes. Primeiro porque nem tudo pode ser generalizado e segundo, porque o pluralismo deve ser usado como pressuposto para a alteridade. Ao lado de vocacionados perdidos neste turbilhão de mudanças, há aqueles convictos de um ideal servidor, acolhedor, de diálogo com o outro... Esses sobreviverão aos tempos de crise porque podem repetir como Paulo: “Eu sei em quem acreditei” (2Tm 1,12).



* Este texto é fruto de anotações feitas em sala de aula na Pontifícia Universidade Católica do Paraná em janeiro de 2012 no curso de especialização em Missiologia. Estas anotações correspondem ao conteúdo ministrado pelo Prof. Angenor Brighenti na disciplina “Contexto Eclesial atual e Aparecida”.


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