Doutrina Social

on domingo, 25 de novembro de 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ - PUCPR
Temas de práxis pastoral – Doutrina Social da Igreja
Aluno: Luiz Fernando de Lima
Curso: Mestrado em Teologia
Professor: Agenor Brighenti
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SOLLICITUDO REI SOCIALIS, 20 anos depois da Populorum Progressio

Poucos documentos do Magistério conseguem alcançar uma amplidão tão grande e atingir tantas pessoas distintas como foi o caso da Encíclica de Paulo VI, a Populorum Progressio em 1967. Tal como a Pacem in Terris (1963) de João XXIII é um documento que não comemora nenhuma data importante em relação à Rerum Novarum. No entanto, a PP impactou de tal forma a comunidade humana que na comemoração dos seus vinte anos muitas foram as realizações acontecidas em torno desta encíclica. Da parte da Igreja, o então Papa João Paulo II fez vir a público a Sollicitudo Rei Socialis, o único documento de viés social até o presente momento que comemora o aniversário de promulgação  de uma carta encíclica que não seja a Rerum Novarum.
Vinda a público no dia 30 de dezembro de 1987, a SRS tem em vista atingir dois objetivos: “render homenagem a este histórico documento de Paulo VI [PP] e ao seu ensinamento” e “reafirmar a continuidade da doutrina social da Igreja e, conjuntamente, a sua renovação constante” (nn. 3). Intenta João Paulo II ainda a “prolongar o seu eco [PP], pondo esses ensinamentos em ligação com as possíveis aplicações ao presente momento histórico, não menos dramático do que o que se vivia há vinte anos” (nn. 4).
Para Ildefonso Camacho, “esta encíclica foi acompanhada, desde o começo, por uma forte polêmica em torno da atitude oficial da Igreja em relação ao capitalismo.... Por ocasião da SRS assistimos a uma certa tentativa de ver na encíclica uma confirmação dos princípios liberais, a alma do mais puro capitalismo. O próprio interesse de João Paulo II em dar destaque às insuficiências do coletivismo foi interpretado por alguns como um incondicional apoio à alternativa capitalista liberal”*.
Colocando de lado as polêmicas em torno da SRS, diz-se que a mesma está dividida em cinco partes. Na primeira parte apresenta os ensinamentos e a novidade da PP. Logo em seguida, esboça um panorama do mundo contemporâneo, o que dá fundamento para que se fale na terceira parte de um desenvolvimento humano autêntico. O Romano Pontífice faz uma leitura teológica dos problemas modernos na quarta parte e na quinta e última apresenta algumas orientações particulares como, por exemplo, o fato de lembrar que “a doutrina social da Igreja não é uma ‘terceira via’ entre capitalismo liberalista e coletivismo marxista, nem sequer uma possível opção entre outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria” (nn. 41) e que a opção preferencial pelos pobres é um elemento essencial desta mesma doutrina social (nn. 42).
Entre os principais temas apresentados pela SRS encontra-se em primeiro lugar logo nos nn. 3-4 uma chamada à consciência de todos em relação a uma “concepção mais rica e mais diferenciada do desenvolvimento”. Três pontos em relação à PP são realçados nos nn. 8-10: o tema do desenvolvimento, a amplidão de horizonte e a relação do desenvolvimento com a paz. Quando se refere ao Terceiro Mundo, a SRS apresenta um olhar pessimista diante das possibilidades do seu desenvolvimento, tendo em vista os poucos resultados dos esforços já olvidados (nn. 11-13). Aponta-se nos nn. 14-19 para: uma multidão que vive na miséria; crescimento do sulco entre Norte-Sul, chegando até a falar em “Quarto Mundo”; analfabetismo; repressão do direito de iniciativa econômica; pobreza não só econômica; mecanismos perversos que mantêm a situação de pobreza; crise de habitação, desemprego e dívida internacional. Ainda se colocam como temáticas preocupantes (nn. 20-25): a corrida armamentista, a venda de armas, o terrorismo, os refugiados, o problema demográfico.
Entre os temas elencados acima, podem ser acrescentados a indicação de João Paulo II nos nn. 27-34 de que o verdadeiro desenvolvimento deve apoiar-se no crescimento do ser da pessoa e não no ter mais e o fato de que na raiz dos problemas resenhados encontrar-se uma estrutura bem definida e atuante que a SRS chamou de “estruturas de pecado” (nn. 35-40). Soma-se a isso ainda, a preocupação pelos direitos humanos, pela paz e pela ecologia (n. 26).
Apesar de não ter o alcance da PP e nem a sua clareza e amplidão de abordagem, a SRS traz contribuições interessantes para o corpus do ensino social da Igreja como, por exemplo, a ratificação de que “sobre a propriedade, de fato, pesa ‘uma hipoteca social’” (nn. 42). Sua luz ainda continua a iluminar muitas situações hodiernas como o analfabetismo, que agora é, sobretudo, funcional; as situações de pobreza continuam crescendo a cada dia mais nos bolsões da miséria e da fome; os refugiados constituem um problema premente ainda mais hoje com a situação de Darfur no Sudão, por exemplo; o desenvolvimento continua não sendo integral e atinge só um pequeno grupo de privilegiados; a preocupação ecológica continua só uma preocupação e muito pouco se faz de concreto...
Enfim, ao comemorar os vinte anos da PP e seus ensinamentos, João Paulo II salientou, sobretudo, que a “solicitude social da Igreja tem como fim um desenvolvimento autêntico do homem e da sociedade” (nn. 1).


* CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. Trad: J. A. Ceschin. São Paulo: Loyola, 1995, p. 421.

Doutrina Social

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ - PUCPR
Temas de práxis pastoral – Doutrina Social da Igreja
Aluno: Luiz Fernando de Lima
Curso: Mestrado em Teologia
Professor: Agenor Brighenti
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POPULORUM PROGRESSIO, o desenvolvimento é o novo nome da paz

No início da segunda metade do século XX, precisamente nos anos 60, a Igreja viveu um período único em sua história com a realização do Concílio Vaticano II, que foi um revigoramento das forças e um aggiornamento na postura, na doutrina e no jeito de ser Igreja perante o mundo moderno. Pouco tempo depois do começo dos trabalhos conciliares a Igreja perdeu seu grande mentor, o papa João XXIII. Em pleno concílio, Paulo VI toma nas mãos o leme da barca de Pedro e ao concluir esta tarefa conciliar, coloca a Igreja em mares nunca antes navegados, pois se tratava agora dos mares do serviço e do diálogo...
A resposta do concílio aos problemas sociais veio por meio da constituição Gaudium et Spes, promulgada em 08 de dezembro de 1965. No entanto, pareceu a Paulo VI que o tema do desenvolvimento integral dos povos precisava de um esclarecimento e uma concretização maior, o que o Pontífice fez por meio da Encíclica Populorum Progressio, datada de 26 de março de 1967.
O problema do conflito industrial que dera origem à Doutrina Social da Igreja no final do século XIX e que culminou no enfrentamento logo após as duas grandes guerras entre capitalismo e socialismo, agora assume outra dimensão uma vez que não se trata mais de conflito entre os blocos Leste-Oeste, mas de enfrentamento entre Norte-Sul, isto é, entre países ricos desenvolvidos e países pobres subdesenvolvidos.
A PP está dividida em duas grandes partes. A primeira trata do desenvolvimento integral do homem e a segunda versa sobre o desenvolvimento solidário da humanidade. Na introdução já se tem presente que a questão social abrange agora o mundo inteiro e, portanto, a necessidade de promover o desenvolvimento dos povos. No final, esta Encíclica faz um apelo a todas as pessoas para que assumam a causa do desenvolvimento integral; entre essas pessoas às quais se dirige o apelo estão os católicos (nn. 81), os cristãos e fiéis (nn. 82), os homens de boa vontade (nn. 83), homens de Estado (nn. 84) e sábios (nn. 85), para que todos colaborem na solução do urgente problema do desenvolvimento (nn. 86-87).
A encíclica é dedicada, por conseguinte, à cooperação entre os povos e ao problema dos países em desenvolvimento. O texto denuncia o agravamento do desequilíbrio entre países ricos e pobres, critica o neocolonialismo e afirma o direito de todos os povos ao bem-estar. Propõe ainda a criação de um grande Fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados. O texto também critica tanto o 'liberalismo sem freio que conduziu ao "imperialismo internacional do dinheiro", como a coletivização integral e a planificação arbitrária, que priva os homens da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Paulo VI, apesar do clima otimista e positivo instaurado pelas inovações conciliares, deu à PP um tom mais de equilíbrio, objetivando concretizar a doutrina da GS. Entre os principais temas propostos neste documento encontram-se: a contribuição da Igreja ao desenvolvimento; a colonização em seus aspectos bons e ruins; o desequilíbrio crescente entre os povos, onde os “ricos gozam de um crescimento rápido, enquanto os pobres se desenvolvem lentamente” (nn. 8); o choque entre as civilizações tradicionais e as novidades trazidas pela civilização industrial (nn. 10); a visão cristã do desenvolvimento (nn. 14-21), onde se fala não só de um crescimento econômico, mas de uma promoção de “todos os homens e do homem todo” (nn. 14); o destino universal dos bens (nn. 22-24); quanto à propriedade se afirma que ela “não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto” e que seu “direito nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum” (nn. 23); a industrialização e a ambivalência do trabalho (nn. 27-28); a alfabetização (nn. 35); a necessidade de um verdadeiro humanismo (nn. 42); a luta contra a fome (nn. 45); a renúncia ao supérfluo, que deve estar a serviço dos pobres (nn. 49); a equidade nas relações comerciais (nn. 56-65); a caridade universal, já que segundo a PP “o mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo” (nn. 66).
Ao partir da prioridade do SER sobre o TER (nn. 12-21), a PP propõe ainda duas diretrizes de ação: a necessidade de uma transformação radical e planejada das economias do Terceiro Mundo (nn. 29.32-33) e uma mudança na forma de proceder dos países industrializados, que deve passar de uma exploração para uma ajuda aos mais pobres (nn. 48-49).
Ao lado da Evangelii Nuntiandi, a Populorum Progressio constitui-se num dos textos mais inspirados do Magistério eclesiástico. Sua temática ainda que apresentada em 1967 continua atual e questionando, bem como iluminando, muitas situações do hoje da história. Basta olhar ao redor para perceber que o desenvolvimento integral e solidário ainda não aconteceu. O colonialismo assume novas roupas como o financiamento de guerras civis para obtenção fácil de petróleo. Continua contrastante o fato de 20% deterem 80% da produção, enquanto 80% detêm apenas os sobrantes 20%. O desenvolvimento do homem todo e todos os homens se transformou no desenvolvimento de uma pequena parcela da população mundial. É gritante a situação onde alguns países brigam entre si para ver quem põe no mercado uma nova tecnologia de ponta, enquanto outros mal sabem o que fazer com os milhões de refugiados que só querem um pouco de pão para matar a fome.
Oxalá, o apelo de Paulo VI na PP encontre ressonância entre os homens de boa vontade, para que, de fato, o “desenvolvimento seja o novo nome da paz” (nn. 76-80).

POR UMA NOVA COMPREENSÃO DA MULHER A PARTIR DE Mc 10,1-12

“DESDE O PRINCÍPIO DA CRIAÇÃO ELE OS FEZ HOMEM E MULHER”:
POR UMA NOVA COMPREENSÃO DA MULHER A PARTIR DE Mc 10,1-12

"DESDE EL PRINCIPIO DE LA CREACIÓN SE HIZO VARON Y MUJER":
POR UN NUEVO ACUERDO DE LA MUJER A PARTIR DE Mc 10,1 a 12
 
Autor: Luiz Fernando de Lima[1]
Orientador: Prof. Dr. Vicente Artuso[2]

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo mostrar o posicionamento de Jesus em relação à mulher a partir do texto de Mc 10, 1-12. Para tanto, parte-se de uma pesquisa bibliográfica que apresenta a situação da mulher, do matrimônio e do divórcio na história do povo de Deus, passando por uma cuidadosa observação da atitude de Jesus em relação às mulheres com as quais convivia, chegando ao seu ensinamento da indissolubilidade matrimonial, entendido a partir da igualdade entre homem e mulher com o intuito de se fazer perceber que a relação que Jesus estabelece com as mulheres não é de misoginia nem discriminatória, mas de acolhida, respeito e alteridade, tendo como fundamento a igualdade originária presente desde o “princípio”.

Palavras-chave: Mulher. Matrimônio. Divórcio



RESUMEN
El presente articulo tiene por objetivo mostrar el posicionamento de Jesús em relación a la mujer a partir de lo texto Mc 10,1-12. Para tanto, se parte de una investigación bibliográfica que presenta la situación de la mujer, del matrimónio y del divorcio em la historia del pueblo de Dios, pasando por una solícita observación de la atitud de Jesús con relación a las mujeres con las cuales convivia, llegando a su ensinamento de la indisolubilidad matrimonial, entendido a partir de la igualdad entre hombre y mujer con la intención de se hacer perceber que la relación que Jesús estabelece con las mujeres no es de misoginia, ni discriminatoria, pero de acogida, respecto y alteridade, teniendo como fundamento la igualdad originaria hallada desde el “principio”.

Palabras-clave: Mujer. Matrimónio. Divorcio.



INTRODUÇÃO

A mulher na sociedade judaica da época de Jesus é considerada um ser inferior em relação ao homem. Não tinha muita escolha, uma vez que até por volta dos 12 ou 13 anos vivia sob a tutela do pai e depois, ao ser dada em casamento, passava para os domínios do seu marido, de modo que a vida toda vivia debaixo do “pátrio poder” ora do pai, ora do esposo. Ainda neste contexto, existe a possibilidade do repúdio da mulher por parte do homem, em alguns casos por situações insignificantes, como por exemplo, deixar um prato de refeição mal cozido (cf. MORIN, 2006, p. 59).
O presente texto tem como objetivo analisar os doze primeiros versículos do capítulo 10 do Evangelho de Marcos, onde Jesus trata da questão do divórcio e da indissolubilidade matrimonial. Pretende-se observar neste trecho bíblico, sobretudo, a posição da mulher que vive uma condição de inferioridade, mas que Jesus resgata recorrendo aos primeiros capítulos do livro de Gênesis, para devolver a ela seu lugar de destaque ao lado do homem.
Para alcançar tal objetivo propõe-se nas próximas páginas uma compreensão satisfatória de Mc 10,1-12, bem como uma análise da situação da mulher, do relacionamento matrimonial e do divórcio na história do povo de Deus. Também será apresentada a atitude e a posição de Jesus em relação às mulheres e a afirmação da indissolubilidade matrimonial a partir da igualdade originária entre homem e mulher.

COMPREENDENDO O TEXTO DE Mc 10,1-12

O livro de Marcos presente no Novo Testamento inaugura um gênero literário chamado de “Evangelho”, uma vez que seu texto é considerado o mais antigo em relação a Mateus, Lucas e João[3]. Pretende Marcos com seu escrito colocar o leitor diante de três situações: em face ao mistério de Jesus, o leitor depara-se com a pergunta “E vós, quem dizeis que eu sou?” (8,29), que o vai conduzindo a partir de uma teologia narrativa até o momento da cruz, onde Jesus é proclamado Filho de Deus (15,39). A segunda situação que o leitor de Marcos se depara é em relação ao discipulado, uma vez que o Evangelho convida nas suas entrelinhas o leitor a identificar-se com o grupo dos discípulos, que se mostra ambivalente, mas que apesar de toda cegueira, traição e fuga são chamados a dar testemunho de Jesus crucificado e ressuscitado. Por fim, o leitor de Marcos é colocado diante do “caminho da salvação”. Neste caminho se compreende que a salvação é antes de tudo um chamado ao dom de si para o serviço a todos (cf. Lentzen-Deis, 2003, p. 37-38).
O texto do capítulo 10 que se propõe a analisar aqui se insere num contexto maior, fazendo parte da viagem que Jesus empreende para fora da Galileia[4]. Nesta seção de textos, Marcos apresenta Jesus formando seus discípulos sobre algumas recomendações para a prática do discipulado, falando, sobretudo, por três vezes da sua paixão (8,31-33;9,30-32;10,32-34). É sob o anúncio do seguimento da cruz que o Evangelho de Marcos coloca a proibição do divórcio. O capítulo 10 começa justamente com a partícula grega “kay” = “E”, o que denota continuidade dos ensinamentos.
Olhando o texto de 10,1-12 pode-se propor a seguinte divisão com o intuito de facilitar a compreensão: v. 1 situa a cena que acontece além do Jordão; v. 2 apresenta os fariseus e a intenção deles de colocar Jesus à prova; v. 3 a 9 mostram as respostas de Jesus e o embate direto com os fariseus; v. 10 descreve o interesse dos discípulos no ensinamento de Jesus; v. 11 e 12 acontece a reafirmação da indissolubilidade matrimonial.
Seguindo esta divisão proposta, o texto pode ser entendido mais claramente, pois no v. 1 Jesus deixa definitivamente a Galileia e se põe a caminho para Jerusalém e as pessoas acorrem a Ele; no v. 2 os fariseus propõe a questão e querem fazer Jesus cair em contradição em relação à lei; v. 3 a pergunta de Jesus sobre Moisés lembra a expressão de Mc 7,8-9[5]; v. 4 a resposta dos fariseus baseia-se em Dt 24,1ss[6]; v. 5 a censura de Jesus significa a pecaminosidade resultante da transgressão contínua da lei e a insensibilidade do homem; v. 6 a 8 faz notar que a argumentação de Jesus remonta ao “princípio”, lembrando Gn 1,27 e 2,24 – para Lentzen-Deis (2003, p. 326) o termo “carne” que aqui aparece não se restringe à comunhão carnal, mas indica a relação humana total; v. 9 Jesus faz perceber que se Deus uniu Ele também assiste a comunidade dos cônjuges; v. 10 é um ensinamento particular/personalizado, constituindo como que instruções para o futuro; por fim, v. 11 e 12 mostram a rejeição por parte de Jesus de modo absoluto da prática judaica do divórcio, pois ela contraria um dos mandamentos do Decálogo[7].
Pode-se, portanto, destes versículos de Marcos compreender que aquele que cumpre a vontade de Deus não procura a ruptura, mas o viver feliz do matrimônio, já que na nova comunidade do matrimônio procura-se acrescentar o amor ao outro. A dignidade e a liberdade orientam-se a um matrimônio para a vida (cf. Letzen-Deis, 2003, p. 327-329).

A SITUAÇÃO DA MULHER, O RELACIONAMENTO MATRIMONIAL E O DIVÓRCIO NA HISTÓRIA DO POVO DE DEUS

Uma pergunta determinante para o entendimento de toda a amplidão do ensinamento de Jesus nestes versículos de Marcos que estão sendo analisados é a respeito de quem era a mulher neste contexto social. A esta indagação soma-se também a necessidade de se ter em mente o significado bíblico do casamento.
Partindo da compreensão primeira sobre o matrimônio na Sagrada Escritura é preciso ter em mente pelo menos a ideia proveniente dos profetas sobre tal assunto, uma vez que para Bonnin (2003, p. 50) “a teologia dos profetas marca uma nova etapa, na revelação bíblica, do amor entre o homem e a mulher”. O mais significativo ensinamento é de Oseias (1-3) que usa da imagem do matrimônio com todo o seu drama de infidelidade e amor para explicar a relação de Deus com o seu povo. Tal como uma esposa infiel, o povo é sempre perdoado por Deus, o esposo fiel. Para Bonnin (2003, p. 50), ainda,

O importante de toda esta linguagem é que se os profetas se serviram do amor sexual do matrimônio, para que o homem aprenda como devem ser suas relações com Deus em termos pessoais e coletivos, é indubitável que este amor está capacitado para manifestar o mistério da aliança de salvação. Mesmo sem pretendê-lo de maneira direta, os profetas, fazendo uma teologia do matrimônio, descobrem-nos qual deve ser o significado da entrega conjugal.

Como se pode notar, a teologia do matrimônio na Sagrada Escritura assume uma visão muito clara ao fazer perceber que a união de um homem e uma mulher significa a relação entre Deus e seu povo. Tendo esta ideia como pano de fundo, questiona-se: como podem os fariseus como exímios conhecedores da Lei e dos Profetas praticarem o divórcio, uma vez que Deus jamais se divorciou de seu povo?
Para compreender a prática judaica do repúdio necessário se faz entender quem é a mulher nesta sociedade.
Para início de conversa e a fim de dar a tônica do papel da mulher neste contexto faz-se mister citar o que Flávio Josefo escreveu em Contra Apião: “A mulher, diz a Lei, é inferior ao homem em todas as coisas. Ela deve obedecer não para se humilhar, mas para ser dirigida, pois foi ao homem que Deus deu o poder” (cf. apud, MORIN, 2006, p. 56)[8]. Tendo presente esta informação de Josefo, tem-se em mente que, de fato, a mulher não participava da vida pública. Às solteiras se aconselhava que ficassem em casa e às casadas que saíssem às ruas somente com o rosto coberto (cf. MORIN, 2006, p. 56; JEREMIAS, 1983, p. 471-477). Segundo Jeremias (1983, p. 474), “a mulher que saía de casa sem ter a cabeça coberta, quer dizer, sem o véu que ocultava o rosto, faltava de tal modo aos bons costumes que o marido tinha o direito e, até o dever, de despedi-la”. Parece que nos campos não se observava à risca estes costumes quanto nas cidades[9].
Quanto a este aspecto há exceções. Duas vezes ao ano as jovens se exibiam diante dos rapazes dançando nos vinhedos das cercanias de Jerusalém; também Salomé (cf. Mc 6,22) que dança diante dos convivas do rei Herodes Antipas (cf. JEREMIAS, 1983, p. 476).
No sentido religioso, a mulher também não era igual ao homem. Apesar de estar sujeita a todas as proibições e normas da Lei, até mesmo da pena de morte, encontrava-se dispensadas de observar alguns mandamentos, como por exemplo, a obrigação de peregrinar a Jerusalém nas festas que a Lei prescrevia, como Páscoa e Tendas.
Na casa paterna a situação não era diferente em relação ao que acontecia na vida pública, pois as filhas vinham após os filhos e não aprendiam a Torah[10]. Sua formação limitava-se apenas a trabalhos domésticos, costura e fiação. Não tinham os mesmos direitos que os irmãos no que tange, por exemplo, à sucessão (cf. JEREMIAS, 1983, p. 478). A mulher vivia sob o regime do pátrio poder! Até os doze anos e meio de idade uma jovem não tem o direito de recusar o casamento arranjado pelo pai. Este, por sua vez, é quem tem o direito sob o “mohar” [dote] pago pelo noivo em relação ao casamento. Portanto, o jovem devia “adquirir” (qinyan) sua mulher pagando uma quantia ao sogro, inclusive presenteando-o durante o noivado. Ainda, até os doze anos o pai pode vender sua filha como escrava[11].
Os noivados eram extremamente precoces e serviam para preparar a jovem para passar do poder do pai à submissão do esposo. Aconteciam em torno dos 12 anos ou doze anos e meio, mas a precocidade de tais arranjos ia mais além; parece que “enquanto viveu, Agripa I fez duas filhas ficarem noivas: Mariana aos dez anos e Drusila aos seis” (cf. JEREMIAS 1983, p. 480). Preferentemente, os casamentos eram arranjados entre parentes, pois era uma forma de não se perder os bens da família.
O casamento era realizado por meio de um contrato chamado de ketubbah[12], que definia as responsabilidades e compromissos do marido em relação à sua esposa. O casamento se dava, normalmente após um ano de noivado, quando a jovem ia morar [quase sempre] com a família do marido. Em relação à vida conjugal, compete ao marido prover em tudo sua esposa. A esta, cabia atender as necessidades do lar: moer, cozinhar, lavar, amamentar os filhos, fazer a cama do marido, fiar, tecer, preparar a bacia para o marido, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés... (cf. JEREMIAS, 1983, p. 484-485; MORIN, 2006, p. 57-58).
O direito do divórcio estava exclusivamente do lado do marido. O fundamento para tal direito estava em Dt 24,1ss. Há, no entanto, divergências em torno da interpretação destes versículos. Na época de Jesus, os shamaítas[13] concebiam estes versículos, dizendo que para o repúdio bastava-se encontrar qualquer coisa de vergonhoso, ao passo que para os hiletitas[14] bastava impudicícia da parte da mulher ou qualquer coisa que desagradasse ao marido para dar-lhe o direito de divórcio. De acordo com Morin (2006, p. 59),

o direito do marido tinha alguns limites: não podia devolver a mulher falsamente acusada de não ser virgem, no momento do casamento, nem a violada por ele, antes das núpcias. As obrigações financeiras do contrato deviam ser cumpridas.

Os filhos do casal por ocasião do divórcio ficavam com pai. A ausência deles numa relação matrimonial era considerada desonra e castigo divino, e a culpada pela falta deles era sempre a mulher. Também há preferências por filhos homens do que por meninas[15]. A mulher não podia repudiar, ela era propriedade e não proprietária. No entanto, “eventualmente a mulher podia fazer justiça a si mesma e voltar à casa paterna no caso, por exemplo, de injúrias recebidas” (JEREMIAS, 1983, p. 486).
Enfim, essa era, em linhas gerais, a realidade do matrimônio, do divórcio e da mulher entre o povo de Deus. Imbuídos destas opiniões é que os fariseus se aproximam de Jesus em Mc 10, 1-12 e o questionam para coloca-lo à prova[16]. Para uma compreensão da resposta de Jesus aos fariseus faz-se necessário também, olhar a sua atitude e posicionamento em relação às mulheres que Ele encontra ao longo do seu ministério.

A ATITUDE E A POSIÇÃO DE JESUS EM RELAÇÃO ÀS MULHERES

Diante do ambiente legal, cultural, por vezes, misógino e discriminador de seu tempo, Jesus resgata a figura da mulher. É interessante observar a reveladora maneira de como as tratava. Jesus utiliza parábolas sobre as mulheres para ensinar (Lc 15,8-10); aparece falando com elas (Jo 11, 1-43), curando-as (Mt 9,18-22) e até mesmo um grupo delas o segue (Lc 8, 1-3). Além disso, Jesus prega uma doutrina universal que traz a salvação para todos, sem qualquer tipo de exclusão e ainda, é clara sua opção pelos marginalizados, pois “deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3; Lc 6,20-22).
Logo no início de seu ministério, encontra-se Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4) e após mostrar o projeto do Reino faz alusão às mulheres, citando a viúva de Sarepta (Lc 4, 25-26). Segundo Soberal (1989, p. 96) a primeira alusão direta foi para as mulheres.
Em relação ao sistema de pertença ao povo de Deus, Jesus também assume uma nova postura ao substituir o rito da circuncisão pelo batismo. A circuncisão era um rito exclusivamente masculino, que caracterizava a pertença ao povo escolhido e possibilitava a participação no culto divino, como as mulheres não eram circuncidadas, pode-se supor que não participavam plenamente da vida religiosa do povo[17].
De acordo com Soberal (1989, p. 99), “o rito do batismo substitui o rito da circuncisão. Se este era exclusivamente para os homens, o batismo é oferecido a todos. Não como algo optativo, possível ou que se deixa à livre determinação dos fiéis, mas como mandato e requisito necessário”. O livro dos Atos dos Apóstolos logo no seu início (1,15) aponta essa realidade mostrando que a primeira comunidade cristã já contava com cento e vinte pessoas, entre elas homens e mulheres.
Quando Jesus apresenta as condições para o discipulado[18], bem como suas exigências parece não fazer distinção entre seguidores homens ou mulheres: “Se alguém {grifo nosso} quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). Para Soberal (1989, p. 103) “a doutrina pregada por Jesus e à qual referem os evangelistas é universal em seu tríplice aspecto: tempo, espaço e destinatários”.
No que tange à questão de relacionamento com mulheres, Jesus quebra os paradigmas apontados acima ao entrar em contato em atitude de benignidade com a hemorroísa (Mc 5,25-43), a mulher cananéia (Mc 7,24-30), a pecadora pública que lhe unge os pés em Betânia (Mc 14,3-9), a mulher adúltera (Jo 8,1-11)... Em relação ao ensino que só era permitido aos homens, a atitude de Jesus também é surpreendente em relação às mulheres, basta lembrar a samaritana (Jo 4,5-41) e Maria em Betânia (Lc 10,39).
Como se pode perceber, as mulheres aparecem em vários momentos da vida e do ministério de Jesus, ainda que sempre à distância, agindo e atuando à surdina, sub-repticiamente[19].  De forma bastante ousada, ao passo que não se sabe exatamente quantas mulheres seguiam Jesus, junto com Soberal (1989, p. 116) pode-se dizer que, levando em consideração a simbologia do número doze, que doze são também as “apóstolas” que seguiram Jesus. Ei-las: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios (Lc 8,2; Jo 19,25); Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes (Lc 8,2); Susana (Lc 8,2-3); Salomé (Mc 15,40); Maria, a mãe de Tiago e de Joset (Mc 15,40); a Mãe dos filhos de Zebedeu (Mt 27,55-56); Marta, irmã de Lázaro (Lc 10,38-42); Maria, irmã de Lázaro (Lc 10,38-42); a Samaritana, depois de sua conversão (Jo 4,31-42); Júnia, que, conforme Paulo, deve ser incluída entre as mulheres (Rm 16,7); Maria, mulher de Cleofas (Jo 19,25); e Maria, a mãe de Jesus... que aparece em diversas ocasiões, mas de modo especial junto à cruz (Jo 19,25-27).
Estas referências acima, por conseguinte, revelam em Jesus uma total ausência tanto de sentimentos misóginos como da ideia, predominante no mundo judaico, de que a mulher era um ser inferior, o que se observa de modo muito claro no embate de Jesus com os fariseus em Mc 10, 1-12 sobre a questão do divórcio.

A INDISSOLUBILIDADE MATRIMONIAL A PARTIR DA IGUALDADE ENTRE HOMEM E MULHER
A posição de Jesus em relação à mulher parece ser melhor evidenciada em Mc 10,1-12 justamente quando este é questionado pelos fariseus em relação à liceidade da carta de repúdio, admitida por Moisés conforme Dt 24,1ss. Neste embate, Jesus claramente se coloca contrário à tradição judaica, mas o faz fundamentando sua argumentação numa tradição anterior em relação à seguida pelos fariseus em sua época.
Situando o episódio é preciso notar antes de tudo que o questionamento ao qual Jesus é submetido não constitui uma novidade em Marcos. Em 8,11 e 12,13-15 aparecem situações semelhantes. Recorde-se que o episódio de 10, 1-12 ocorre durante a caminhada para Jerusalém, justamente quando Jesus se propõe a ensinar seus discípulos[20].
Tendo, portanto, presente que Jesus está ensinando, agora se faz necessário observar os versículos 5 a 9 que constituem a resposta de Jesus ao questionamento que fora feito. A resposta é densa e carregada. Dando um salto para a criação, Jesus resgata o fundamento primeiro da união entre um homem e uma mulher, relembrando que “desde o princípio da criação ele os fez homem e mulher. Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe, e os dois serão uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não separe”.  Há aqui algo novo: Jesus questiona Moisés e coloca em xeque o ensinamento deste. Embasado em que ele o faz? Jesus questiona Moisés, porque, ao contrário deste, não é intérprete da Lei, mas seu fundamento (cf. PIGHIN, 2005, p. 98).
O que é interessante observar neste texto ainda, é que antes de afirmar a indissolubilidade do matrimônio, Jesus resgata a figura e a posição da mulher[21] diante do homem e, consequentemente, diante também da sociedade.
Quando Jesus se refere ao princípio, resgata os relatos da criação (cf. Gn 1,27; 2,24). Lá homem e mulher são descritos por ‘ish e ‘ishshâh, respectivamente varão e “varoa”; essas palavras têm a mesma raiz etimológica uma vez que provêm de ‘enash, revelando uma total identidade (cf. BAUER, 1978, p. 736). De acordo com Botero (2001, p. 23), “o primeiro homem acolhe a mulher com um grito de júbilo e reconhece nela a alteridade que buscava, sua própria interioridade”. Em outros termos, pode-se dizer que o júbilo adâmico reflete alteridade, reciprocidade e comunhão interpessoal. Não se tem diferença, mas igualdade originária, que pede cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento ou, como diz a Gaudium et Spes (nn. 48), o matrimônio é “a íntima comunhão de vida e de amor conjugal”.
A respeito da igualdade entre homem e mulher, a Sagrada Escritura oferece elementos para observação a partir do Antigo Testamento. Em Ex 21,15.17 se lê: “Quem ferir o seu pai ou sua mãe, será morto. Quem amaldiçoar o seu pai ou sua mãe, será morto”. Da mesma forma, Lv 20,9: “Quem amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe deverá morrer. Visto que amaldiçoou a seu pai ou a sua mãe, o seu sangue cairá sobre ele mesmo”. Como se vê, apesar de imperar na época de Jesus uma visão depreciativa da mulher baseada na tradição e na Lei, a mesma Lei oferece elementos para perceber uma igualdade entre ambos os sexos. Portanto, o posicionamento de Jesus não é descabido nem desvairado. Homem e mulher são imagem e semelhança de Deus, cada um com sua especificidade própria, mas nada que justifique a discriminação de uma ou de outra parte, porque “no princípio não era assim”.
Junto à posição de igualdade da mulher, Jesus apresenta também a indissolubilidade matrimonial e a igualdade fundamental dos cônjuges no matrimônio. De fato, o amor conjugal autêntico aparece sempre como algo que, por si mesmo, é indissolúvel e para sempre[22]. Para Eduardo Bonnin (2003, p. 97),

O amor conjugal exige uma estabilidade e permanência que faz com que, em princípio, seja para sempre. Se as qualidades físicas ou psíquicas podem ir mudando, o ser da pessoa, seu núcleo mais autêntico, é algo que permanece acima de todas as mutações. Se se ama conjugalmente uma pessoa, continuar-se-á querendo-a apesar de suas mudanças superficiais, pois a razão da entrega radica em algo que não desaparece.

Ao mostrar, assim, o fundamento da indissolubilidade e a igualdade fundamental dos cônjuges em relação um ao outro, Jesus o faz resgatando o papel e o lugar da mulher na união conjugal, refutando, desse modo, a opinião dos fariseus que sobrepunham uma licença a um mandamento[23]. Esse ensinamento de Jesus parece ser novo e chocante aos discípulos que pedem explicações posteriormente em casa, ocasião em que Jesus reafirma o que havia sido dito antes na presença dos fariseus (cf. Mc 10, 10-12).

VARIANTES SINÓTICAS

Parece ainda ser interessante apresentar as variantes sinóticas em relação a este texto de Marcos, a fim de se observar alguns elementos diferentes nas redações de Lucas e Mateus.
Basicamente, as versões de Lucas (16,18) e Mateus (19,1-12) contêm o mesmo ensinamento de Marcos (10,1-12). No entanto, algumas variantes são encontradas, sobretudo, em relação a Marcos e Mateus.
Em Mc 10, 12 Jesus fala de um “direito” da mulher em repudiar. Conforme Letzen-Deis (2003, p. 326), parece tratar-se aqui da concepção legal greco-romana em que tanto o esposo quanto a esposa podiam dissolver o contrato matrimonial[24].
Em Mateus, além de aparecer o tema no v. 12 sobre os eunucos, há também uma variante interessante no v. 9 (“Eu vos digo que todo aquele que repudiar a sua mulher – exceto por motivo de ‘fornicação’ [adultério] – e desposar uma outra, comete adultério”) que parece apontar uma situação em que o matrimônio seria passível de dissolução.
O texto grego apresenta nesta passagem o termo porneia, que pode ser traduzido tanto por fornicação quanto por adultério. Bonnin (2003, p. 171) informa que muitas têm sido as interpretações sobre esta variante. Para alguns, Mateus aceitaria a separação, mas não um novo matrimônio[25]; outros acreditam que não se deve traduzir “exceto”, mas inclusive em caso de adultério[26]; Santo Agostinho dizia que é preciso dar à frase um sentido preteritivo, traduzindo-a por “prescindindo do caso de adultério”[27] (apud Bonnin, 2003, p. 171); Porneia diz respeito a matrimônios válidos conforme a legislação romana, mas contraídos contrariamente às leis judaicas (Lc 18). Esses matrimônios seriam dissolúveis porque a comunidade os considerava nulos[28]; ainda, Mateus, admitiria uma autêntica exceção à indissolubilidade do matrimônio. A resposta de Jesus, no contexto das escolas rabínicas (Shamai – estrita; Hillel – laxa) refere-se a que não é lícito dar o libelo de repúdio por qualquer causa, mas só no caso de adultério, essa última opinião é a que comumente aparece entre os Teólogos da Igreja Ortodoxa e Protestantes (BONNIN, 2003, p. 172). Junto ainda de Bonnin (2003, p. 172), parece que as duas últimas interpretações são as mais prováveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração o estudo do texto de Mc 10,1-12 percebe-se o ensinamento novo de Jesus em relação à mulher. Sua vida e ministério fazem perceber sua posição diante delas. Ao referir-se ao princípio, Jesus resgata a condição de igualdade originária existente entre o homem e a mulher, desautorizando a prática judaica que permitia a carta de repúdio dada somente pelo homem, uma vez que a mulher figurava como pessoa de segunda categoria, ao lado dos escravos pagãos e das crianças.
Reafirmando a indissolubilidade, Jesus coloca a mulher na mesma magnanimidade do homem. Esta deve ser respeitada, amada, cuidada e protegida pelo homem e vice-versa. Afinal de contas, no princípio os dois se reconheceram em sua alteridade e comunhão interpessoal.
Para Jesus, aquele (a) que cumpre a vontade Deus não procura a ruptura, mas o viver feliz do matrimônio, acrescentando o amor ao outro. No matrimônio ainda, pode-se dizer que a dignidade e a liberdade orientam-se para uma autêntica vivência de igualdade de direitos entre os gêneros: aos dois, homem e mulher na sua igual dignidade, se exige o amor conjugal (Eu amo somente a você e te amo para todo o sempre).

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2000, 9ª impressão.
A Bíblia TEB [grande] (Tradução Ecumênica da Bíblia). São Paulo: Loyola, 1989.
BALANCIN, Euclides Martins. Como ler o Evangelho de Marcos: quem é Jesus?. São Paulo: Paulus, 7ª ed, 2005.
BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. Vol. II. Trad: Helmuth Alfredo Simon. São Paulo: Loyola, 2ª ed, 1978.
BONNIN, Eduardo. Ética matrimonial, familiar e sexual. Trad: José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave Maria, 2003.
BOTERO, Sílvio. O amor conjugal, fundamento do casal humano. Trad: Ivo Montanhese. Aparecida: Santuário, 2001
CLEMENTS, R. E. (org). O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas. Trad: João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
CONCILIUM/154 – 1980/4: TEOLOGIA PRÁTICA. A mulher numa estrutura eclesial masculina.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. Trad: M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 2ª ed, 1983.
LENTZEN-DEIS, Fritzleo. Comentário ao Evangelho de Marcos: modelo de nova evangelização. Trad: José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave Maria, 2003.
MARCONCINI, Benito. Os evangelhos sinóticos: formação, redação e teologia. Trad: Clemente Raphael Mahl. São Paulo: Paulinas, 3ª ed, 2007.
McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. Verbete: MULHER, p. 634-636. Trad: Álvaro Cunha. São Paulo: Paulus, 8ª ed, 2003.
MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. Trad: Vicente Ferreira de Souza. São Paulo: Paulus, 8ª ed, 2006.
NEUSNER, Jacob. Introdução ao Judaísmo. Trad: Heliete Vaitsman. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
PIGHIN, Bruno Fábio. Os fundamentos da moral cristã: manual de ética teológica. Trad: José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave Maria, 2005.
SOBERAL, José Dimas. O ministério ordenado da mulher. Trad: Ilton Luiz Shmitz. São Paulo: Paulinas, 1989.
STAMBUGH, John E.; BALCH, David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. Trad: João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1996.
XVI SEMANA BÍBLICA NACIONAL. A mulher na Bíblia. Revista de cultura bíblica. São Paulo: Loyola, 1986.


[1] Mestrando em Teologia pela PUCPR.
[2] Professor de Novo Testamento no curso de Mestrado em Teologia da PUCPR.
[3] Há uma discussão acirrada quanto à data de composição do Evangelho de Marcos. Conforme Lentzen-Deis (2003, p. 35), Pesch pensa que Mc 13 pressupõe a guerra judaica contra Roma e a consequente destruição de Jerusalém no ano 70 e O’Callaghan baseando-se em Mc 4,28 e 6,52 supõe a composição em torno do ano 50. Deixando essas discussões de lado, convém supor com Marconcini (2007, p. 93) que Marcos foi escrito em torno de 65 e 70, antes de Lucas, Mateus e João.
[4] Conforme a Bíblia de Jerusalém esta viagem tem início em 7,24 e só termina no capítulo 11.
[5] “Abandonais o mandamento de Deus, apegando-vos à tradição dos homens. E dizia-lhes: sabeis muito bem desprezar o mandamento de Deus para observar a vossa tradição”.
[6] “Quando um homem tiver tomado uma mulher e consumado o matrimônio, mas esta logo depois não encontrar mais graça a seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente, ele lhe escreverá então uma ata de divórcio e a entregará, deixando-a sair de sua casa em liberdade...”
[7] Ex 20,14 (“Não cometerás adultério”); Dt 5,18 (“Não cometerás adultério”).
[8] Ainda é interessante observar que a mulher sempre é contada entre os escravos pagãos e as crianças. Até mesmo no Novo Testamento nos textos que apresentam a multiplicação dos pães se fala: “Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” (Mt 14,21). Conforme MORIN (2006, p. 56) aos homens se recomendava rezar: “Louvado seja Deus que não me criou mulher”.
[9] “Nada indica que as mulheres observassem de modo tão estrito no campo, como na cidade, o hábito de cobrir a cabeça; pelo contrário, existia, sem dúvida, nesse sentido, entre a cidade e o campo uma diferença notável... uma mulher não deveria, entretanto, ficar sozinha no campo e não é comum, mesmo ali, um homem manter conversa com uma estranha”. (JEREMIAS, 1983, p. 477).
[10] MORIN, 2006, p. 56: “Alguns mestres julgavam que era preferível queimar a Torah que ensiná-la às mulheres”.
[11] Para um entendimento mais amplo e completo, consultar JEREMIAS, 1983, p. 478-480.
[12] A diferença entre uma esposa e uma concubina encontra-se justamente no fato de aquela possuir um ketubbah e esta não. (JEREMIAS, 1983, p. 484).
[13] Seguidores de Shamai, um estudioso judeu do primeiro século e uma das figuras mais importantes da Mishná. Fundou uma escola conhecida como Beit Shamai. Geralmente é associado a Hilel, o ancião de quem foi contemporâneo e oponente sobre as interpretações que deveriam ser dadas aos mandamentos da Halachá.
[14] Seguidores de Hilel, o Ancião, célebre líder cabalista, que viveu durante o reinado de Herodes, o Grande na época do Segundo Templo. Estudioso respeitado em seu tempo, Hilel é associado à diversos ensinamentos da Mishná e do Talmud, tendo fundado uma escola (Beit Hilel) para ensino de mestres.
[15] Inclusive o tempo de purificação da mulher após o parto é diferenciado. Para os meninos se prescrevem 40 dias, ao passo que para meninas esse tempo aumenta para 80 dias (cf. JEREMIAS, 1983, p. 477).
[16] A Bíblia TEB (grande) traz em relação ao versículo 4, que é justamente a pergunta dos fariseus, uma nota bastante interessante: “Percebe-se que os fariseus falam de uma licença, ao passo que Jesus lhes pergunta se há um mandamento, que os fariseus em vão se esforçariam por descobrir na Lei. Em Mt 19,7-9, pelo contrário, os fariseus falam de um mandamento de Moisés, e Jesus lhes responde que aquilo não passa de uma permissão. Na sua resposta, Jesus passa da declaração que permite o divórcio para a declaração que fundamenta o matrimônio: a dispensa não abole a lei fundamental”.
[17] “Não temos evidência de que o rito da oblação do clitóris era praticado com as mulheres” (SOBERAL, 1989, p. 99).
[18] Conferir Mt 16,24-28; Mc 8,34-38; Lc 9,23-27.
[19] Em alguns momentos inclusive, as mulheres são descritas de forma negativa e pejorativa: “Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios” (Lc 8,2).
[20] De fato, o versículo 1 diz: “E, como de costume, de novo as [multidões] ensinava”.
[21] A palavra mulher em Marcos em torno de 16 vezes: 5,25.33; 6,17.18; 7,25.26; 10,2.7.11.12.29; 12,19.20.22.23; 14,3.
[22] Para maior aprofundamento sobre esta questão, ver: BOTERO, Sílvio. O amor conjugal, fundamento do casal humano. Trad: Ivo Montanhese. Aparecida: Santuário, 2001
[23] Conferir nota 14 deste mesmo trabalho.
[24] Tenha-se presente que com muita probabilidade o berço originário do Evangelho de Marcos é comunidade de Roma (cf. MARCONCINI, 2007, p. 94-95).
[25] Esta interpretação remonta a São Jerônimo e pode facilmente ser refutada visto que a simples separação era desconhecida pelos judeus. (cf. Bonnin,2003, p. 171)
[26] Questões filológicas tornam essa opinião recusável. (cf. Bonnin,2003, p. 171)
[27] Cf. Bonnin,2003, p. 171: esta resposta não se ajustaria com a pergunta que foi feita a Jesus.
[28] Cf. Bonnin, 2003, p. 171: Porneia traduz o hebraico “zenut” = matrimônio entre parentes próximos que na comunidade de Mateus eram considerados incestuosos.