Rerum Novarum: Sobre a Condição dos operários

on quarta-feira, 28 de agosto de 2013


SEMINÁRIO DE TEOLOGIA DIVINO MESTRE
DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
Prof. pe. Luiz Fernando de Lima
Acadêmico: Fábio Antunes. 2° ano de teologia



RERUM NOVARUM:
Sobre a condição dos operários


Iniciada no Reino Unido, nas últimas décadas do século XVIII, e ulteriormente expandida por todo o mundo, a Revolução Industrial, que inseriu a máquina nos processos de produção, teve como principal desfecho a consolidação do sistema capitalista de produção.
Pondo abaixo os edifícios econômicos do mercantilismo, bem como o da fisiocracia francesa*, este novo sistema preconizou à maximização dos lucros por meio dos processos industriais de produção e foi, ao mesmo tempo, justificado por uma nova forma de pensar a economia e o trabalho baseada, sobretudo, em três princípios fundamentais; a saber: a liberdade de empresa, a liberdade de comércio e o direito a propriedade privada.
Este novo modelo econômico, conjugado ao ideal liberal, e orientado para maximização dos lucros, promoveu muito rapidamente o acumulo da riqueza nas mãos de uma minoria e, por outro lado, a indigência de uma grande multidão. Tal situação, não sem demora, fez com que algumas vozes se levantassem contra o sistema em curso. Os primeiros a denunciarem os supostos malefícios do capitalismo e sua ideologia liberal foram Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Juntos eles conclamaram a união dos operários em todo o mundo para a derrubada revolucionaria do sistema capitalista julgado por eles como injusto e opressor. Depois, na esteira de Marx e Engels, vieram ainda os movimentos socialistas que também condenavam a ideologia liberal do sistema capitalista e, igualmente, reivindicavam a sua derrubada por meio da ação revolucionária a ser empreendida pelos operários.
Diante desta situação emblemática, e temerosa com a possibilidade da instauração de um conflito entre os homens, a Igreja, representada por Leão XIII, resolve que é tempo de posicionar-se. E é, pois, desta decisão, que nasce aos fins do século XIX, a encíclica Rerum Novarum assinada pelo pontífice Leão XIII.
Datada precisamente a 15 de Maio de 1891, a referida encíclica está dividida em quatro partes: I - A questão social e o socialismo; II - A questão social e a Igreja; III - A questão social e o Estado; e IV- A questão social e a ação conjunta de patrões e operários. Dentro deste conjunto, os temas que mais se destacam, no entanto, são os seguintes: a condição dos operários no contexto capitalista e liberal, o socialismo e sua ideologia revolucionária, a propriedade privada como direito natural do homem, o concurso da igreja nos empreendimentos humanos, as relações de trabalho, o papel do Estado, a igualdade de dignidade entre ricos e pobres e por fim a organização das associações católicas.
Diante da opulência de uns poucos em contraste direto com a indigência da grande multidão, o papa Leão se vê convencido de que a Igreja não pode manter-se num estado de indiferença. Julga necessário, com “medidas prontas e eficazes” sair em auxílio das classes menos favorecidas [os operários] que, pela cobiça de uma concorrência desenfreada e pela ganância dos senhores desumanos, estão vivendo numa “situação de infortúnio e miséria imerecida” (nn. 3-5).
Preocupa-lhe também a empresa socialista e sua investida revolucionária contra a propriedade privada. Ele a considera perigosa e sumamente injusta porque tende a “violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social” (nn. 8). Acreditando que a propriedade privada é de direito natural e fruto do trabalho do homem, julga os ideais socialistas de revolução e propriedade coletiva como algo que prejudicaria os operários ao invés de ajudá-los (nn. 10-17). E, por fim, colocando a propriedade privada na perspectiva da manutenção doméstica da família, sociedade real e anterior a toda sociedade, o pontífice decreta definitivamente a inviolabilidade da propriedade privada e o direito do homem a ela. Nem o Estado e nem tampouco os socialistas podem arbitrar sobre ela (nn. 18-21).
Na ótica de Leão XIII, o continuo desajuste nas relações entre operários e patrões, causa da grande indigência entre multidão, é um problema que não se resolverá com a derrubada da propriedade privada, como advogavam os socialistas. Mas apenas com o concurso da igreja junto aos empreendimentos dos homens (nn. 25). Diferentemente também dos socialistas, Leão não vê as classes [operários e patrões] como adversárias uma da outra, mas considera que ambas estão “destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio” (nn. 28). Neste sentido, o pontífice enumera uma série de princípios fundamentais que devem reger as relações entre patrões e operários, dentre os quais se destacam: o respeito à dignidade do homem realçada pela do cristão, o justo salário, e o cuidado por não haver nenhum tipo de manobra que venha a atentar contra a economia do pobre (nn. 30-32). Fazendo uma especial menção aos deveres do Estado pondera que este deve zelar pela condição social dos operários, “favorecendo-lhes em tudo o que, de perto ou longe, pareça de natureza a melhorar-lhes a sorte” (nn. 48-52).
 Alguns dos temas presentes na Rerum Novarum, no entanto, não só se destacam por sua pertinência, mas também por seu caráter de novidade em relação ao contexto histórico, social e cultural em que a encíclica se constrói.
Frente a um sistema rígido e com uma jornada de trabalho longa e exaustiva, o papa Leão conclama dos patrões um especial cuidado para com a integridade física e mental dos operários. Afirma que “não é justo, nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo”. Nesta mesma perspectiva, fala também da necessidade do repouso festivo, que deve ser para os operários a oportunidade de se dedicarem aos “bens celestes e ao devido culto à Majestade divina” (nn 58-59). Sem esquivas, ressalta, e de forma bem pontual, a importância de se fixar um salário justo ao trabalho realizado pelo operário. Este salário, conforme julga o pontífice, deve, no mínimo, ser suficiente para assegurar a subsistência daquele que trabalha (nn. 61-63).
Outro aspecto que faz da Rerum Novarum um documento bem à frente do seu tempo, é a consideração que Leão XIII faz acerca das diferenças entre a idade e o sexo no que se refere à organização para o trabalho. Posicionando-se contrário ao trabalho infantil e adverte que não esteja, a criança, na oficina, senão quando “sua idade tenha suficientemente desenvolvido as forças físicas, intelectuais e morais”. No caso das mulheres, reconhece que certos trabalhos não lhes são equitativos e que a elas os serviços domésticos e a boa educação dos filhos são as atividades que melhor lhes correspondem, pois a própria natureza é que lhes destina para isso (nn. 60).
 Por fim, a recomendação pontifícia que dispõe os operários a se constituírem em associações, confere a encíclica de Leão XIII um matiz totalmente novo. Nas páginas da Rerum Novarum, o objetivo das associações operárias, muito diferente do intento dos socialistas, baseia-se fundamentalmente no cuidado e no zelo constante pela condição dos operários e da classe trabalhadora. Preconiza-se, sobremaneira, a prosperidade, tanto doméstica como individual dos operários. Por seu intermédio, pretende estabelecer a equidade nas relações entre patrões e operários lembrando a cada um a soma de seus direitos e deveres (nn. 75). Não obstante, há presente também nestas mesmas páginas a orientação para que as associações sejam espaços privilegiados de religiosidade cristã e aperfeiçoamento moral dos operários. Leão preocupa-se com os rumos da sociedade e vislumbra, também por meio das associações operárias, a oportunidade de orientá-la na direção do fim que Deus se propôs ao criar a humanidade. O mesmo caminho em que percorreram os homens do passado quando encontraram o seu em e o bem dos povos (nn. 80-81).
Enfim, ao posicionar-se em favor dos operários, num tempo de forte predomínio capitalista, e ao exigir do Estado e das instituições empresariais uma substancial mudança de atitude em relação ao trato com os operários e com as classes menos favorecidas de modo a proporcionar-lhes condições mais dignas de trabalho e de vida, bem como o incentivo, de sua parte, à formação de associações operárias, a Igreja definitivamente se apresenta muito à frente do seu tempo.
E note-se ainda, em pleno século XXI, a atualidade da Rerum Novarum. A advertência aos patrões exploradores de seus funcionários, exaurindo deles a força física e mental em troca de um baixo salário, continua a ressoar em meio aos ambientes em que imperam a miséria e a opressão. No entanto, ressoa também o convite moroso à conversão da mentalidade, de modo que as relações entre os que empregam e os que são empregados sejam, à luz do Evangelho, mais justas, humanas e fraternas.  
Por fim, uma última e importante consideração. É a partir da encíclica Rerum Novarum que, de forma mais efetiva, na Igreja, se inicia o processo de sistematização daquilo que veio a ser o que conhecemos hoje com o nome de “Doutrina Social da Igreja”.

* O mercantilismo e a fisiocracia foram modelos econômicos anteriores à revolução industrial. O primeiro baseado na atividade comercial de metais preciosos como ouro e prata. O segundo, na produção agrícola. Ambos surgidos na Europa.


REFERENCIA
LEÃO XIII. Rerum Novarum: carta encíclica sobre a condição dos operários. Documentos pontifícios. Edição comemorativa do 100° aniversário de sua promulgação. Edições Loyola. São Paulo: 1991.

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